O critério da Doutrina dos Espíritos


II


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O Espiritualismo moderno baseia-se num completo conjunto de fatos. Uns, simplesmente físicos, revelam-nos a existência e o modo de ação de forças por muito tempo desconhecidas; outros têm um caráter inteligente. Tais são: a escrita direta ou automática, a tiptologia, os discursos pronunciados em transe ou por incorporação. Todas estas manifestações já passamos em revista, analisando-as, noutra parte. * Vimos que são acompanhadas, frequentes vezes, de sinais, de provas que estabelecem a identidade e a intervenção de almas humanas que viveram na Terra e às quais a morte deu a liberdade.


* - Ver No Invisível, 2ª parte. Falamos aqui somente dos fatos espíritas e não dos fatos de animismo ou manifestações dos vivos a distância.


Foi por meio desses fenômenos que os Espíritos * espalharam os seus ensinamentos no mundo e esses ensinamentos foram, como veremos, confirmados em muitos pontos pela experiência.


* - Chamamos Espírito à alma revestida de seu corpo sutil.


O novo espiritualismo dirige-se, pois, conjuntamente, aos sentidos e à inteligência. Experimental, quando estuda os fenômenos que lhe servem de base; racional, quando verifica os ensinamentos que deles derivam, e constitui um instrumento poderoso para a indagação da verdade, pois que pode servir simultaneamente em todos os domínios do conhecimento.


As revelações dos Espíritos, dizíamos, são confirmadas pela experiência. Eles ensinaram-nos teoricamente e demonstraram praticamente, desde 1850, * a existência de forças imponderáveis, dando-lhes o nome de fluidos, que a Ciência rejeitava então a priori. Depois, Sir W. Crookes, entre os sábios que gozam de grande autoridade, foi o primeiro a verificar a realidade dessas forças e a Ciência atual, dia a dia, vai reconhecendo a sua importância e variedade, graças às descobertas célebres de Roentgen, Hertz, Becquerel, Curie, G. Le Bon etc.


* - Ver Allan Kardec - O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns.


Os Espíritos afirmavam e demonstravam a ação possível da alma sobre a alma, em todas as distâncias, sem o auxílio dos órgãos. Não obstante, essa ordem de fatos levantava oposição e incredulidade.


Ora, os fenômenos da telepatia, da sugestão mental, da transmissão do pensamento, observados e provocados hoje em todos os meios, vieram aos milhares, confirmar essas revelações.


Os Espíritos ensinavam a preexistência, a sobrevivência, as vidas sucessivas da alma. E eis que as experiências de F. Colavida, E. Marata, as do Coronel de Rochas, as minhas etc. estabeleceram que não somente a lembrança das menores particularidades da vida atual até a mais tenra infância, mas também a das vidas anteriores estão gravadas nos recônditos da consciência. Um passado inteiro, velado no estado de vigília, reaparece, revive no estado de transe. Com efeito, essa rememoração pôde ser reconstituída num certo número de pacientes adormecidos, como mais tarde o estabeleceremos, quando mais especialmente tratarmos dessa questão. *


* - Ver Compte rendu du Congrès Spirite de 1900, págs. 349 e 350, e Revista Cientifica e Moral do Espiritismo, julho e agosto de 1904. Ver, ainda, A. de Rochas, As Vidas Sucessivas, Chacornac, ed. 1911.


Vê-se, pois, que o Espiritualismo moderno não pode, a exemplo das antigas doutrinas espiritualistas, ser considerado como pura concepção metafísica. Apresenta-se com caráter mui diverso e corresponde às exigências de uma geração educada na escola do criticismo e do racionalismo, a qual os exageros de um misticismo mórbido e agonizante tornaram desconfiada.


Hoje, já não basta crer; quer-se saber. Nenhuma concepção filosófica ou moral tem probabilidade de triunfar se não tiver por base uma demonstração que seja, ao mesmo tempo, lógica, matemática e positiva e se, além disso, não a coroar uma sanção que satisfaça a todos os nossos instintos de justiça.


“Se alguém, disse Leibniz, quisesse escrever como matemático sobre filosofia e moral, poderia, sem obstáculo, fazê-lo com rigor.”


Mas, acrescenta Leibniz: “Raras vezes tem sido isso tentado e, ainda menos, com bom resultado.”


Pode-se observar que estas condições foram perfeitamente preenchidas por Allan Kardec na magistral exposição por ele feita em O Livro dos Espíritos. Esse livro é o resultado de um trabalho imenso de classificação, coordenação e eliminação, que teve por base milhões de comunicações, de mensagens, provenientes de origens diversas, desconhecidas umas das outras, obtidas em todos os pontos do mundo e que o eminente compilador reuniu depois de se ter certificado da sua autenticidade. Tendo o cuidado de pôr de parte as opiniões isoladas, os testemunhos suspeitos, conservou somente os pontos em que as afirmações eram concordes.


Falta muito para que fique terminado esse trabalho, que, desde a morte do grande iniciador, não sofreu interrupção. Já possuímos uma síntese poderosa, cujas linhas principais Kardec traçou e que os herdeiros do seu pensamento se esforçam por desenvolver com o concurso do invisível. Cada um traz o seu grão de areia para o edifício comum, para esse edifício cujos fundamentos a experimentação científica torna a cada dia mais sólidos, mas cujo remate elevar-se-á cada vez mais alto.


Há trinta anos que, sem interrupção, eu mesmo posso dizê-lo, tenho recebido ensinamentos de guias espirituais, que não têm cessado de me dispensar sua assistência e conselhos. As suas revelações tomaram caráter particularmente didático no decurso de sessões, que se sucederam no espaço de oito anos e das quais muitas vezes falei numa obra precedente. *


* - Ver No Invisível.


No livro de Allan Kardec, o ensino dos Espíritos é acompanhado, para cada pergunta, de considerações, comentários e esclarecimentos que fazem sobressair com mais nitidez a beleza dos princípios e a harmonia do conjunto. Aí é que se mostram as qualidades do autor. Esmerou-se ele, antes de tudo, em dar sentido claro e preciso às expressões que habitualmente emprega no seu raciocínio filosófico; depois, em definir bem os termos que podiam ser interpretados em sentidos diferentes. Ele sabia que a confusão que reina na maioria dos sistemas provém da falta de clareza das expressões usadas pelos seus autores.


Outra regra, não menos essencial em toda a exposição metódica, e que Allan Kardec escrupulosamente observou, é a que consiste em circunscrever as ideias e apresentá-las em condições que as tornem bem compreensíveis para qualquer leitor. Enfim, depois de ter desenvolvido essas ideias numa ordem e concatenação que as ligavam entre si, soube deduzir conclusões, que constituem já, na ordem racional e na medida das concepções humanas, uma realidade, uma certeza.


Por isso nos propomos a adotar aqui os termos, as vistas, os métodos de que se serviu Allan Kardec, como sendo os mais seguros, reservando-nos o acrescentar ao nosso trabalho todos os desenvolvimentos que resultaram das investigações e experiências feitas nos cinquenta anos decorridos desde o aparecimento das suas obras.


Por tudo quanto acabamos de dizer, vê-se que a doutrina dos Espíritos, da qual Kardec foi o intérprete e o compilador judicioso, reúne, do mesmo modo que os sistemas filosóficos mais apreciados, as qualidades essenciais de clareza, lógica e rigor; mas o que nenhum outro sistema podia oferecer é o importante conjunto de manifestações por meio das quais essa doutrina se afirmou a princípio no mundo e pôde, depois, ser posta à prova, dia a dia, em todos os meios. Ela se dirige aos homens de todas as classes, de todas as condições; não somente aos seus sentidos e à sua inteligência, mas também ao que neles há de melhor: à sua razão, à sua consciência. Não constituem, na sua união, essas íntimas potências, um critério do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, mais ou menos claro ou velado, sem dúvida, segundo o adiantamento das almas, mas que em cada uma delas se encontra como um reflexo da Razão Eterna, da qual elas emanam? *


* - Os fatos não têm valor sem a razão que os analisa e deles deduz a lei. Os fenômenos são efêmeros; a certeza que nos dão é apenas aparente e sem duração. A certeza só existe no espírito, as verdades únicas são de ordem subjetiva, a História no-lo demonstra.


*


Há duas coisas na doutrina dos Espíritos: uma revelação do mundo espiritual e uma descoberta humana, isto é, de uma parte, um ensinamento universal, extraterrestre, idêntico a si mesmo nas suas partes essenciais e no seu sentido geral; da outra, uma confirmação pessoal e humana, que continua a ser feita segundo as regras da lógica, da experiência e da razão. A convicção que daí deriva fortalece-se e cada vez se torna mais rigorosa, à proporção que as comunicações aumentam em número e que, por isso mesmo, os meios de verificação se multiplicam e estendem.


Até agora, só tínhamos conhecido sistemas individuais, revelações particulares; hoje, são milhares de vozes, as vozes dos defuntos que se fazem ouvir. O mundo invisível entra em ação e, no número dos seus agentes, Espíritos eminentes deixam-se reconhecer pela força e beleza dos seus ensinamentos. Os grandes gênios do espaço, movidos por um impulso divino, vêm guiar o pensamento para cumes radiosos. *


* - Ver as comunicações publicadas por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos e em O Céu e o Inferno; Ensinos Espiritualistas, obtidos por Stainton Moses. Indicamos também Le Problème de l'Au-Delà (Conseils des Invisibles), coleção de mensagens publicadas pelo general Amade. Leymarie, Paris, 1902; as comunicações de um “Envoyé de Marie” e de um “Guide Spirituel” publicadas na revista L'Aurore, da duquesa de Pomar, de 1894 a 1898; as recolhidas por Mme. Krell com o título Révélations sur ma vie spirituelle; La Survie, coleção de comunicações obtidas por Mme. Noeggerath; Instructions du Pasteur B., editadas pelo jornal Le Spiritualisme Moderne etc.


Não está aí uma vasta e grandiosa manifestação da Providência, sem igual no passado? A diferença dos meios só tem par na dos resultados. Comparemos.


A revelação pessoal é falível. Todos os sistemas filosóficos humanos, todas as teorias individuais, tanto as de Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Descartes, Spinoza, como as dos nossos contemporâneos, são necessariamente influenciados pelas opiniões, tendências, preconceitos e sentimentos do revelador. Dá-se o mesmo com as condições de tempo e de lugar nas quais elas se produzem; outro tanto se pode dizer das doutrinas religiosas.


A revelação dos Espíritos, impessoal, universal, escapa à maior parte dessas influências, ao passo que reúne a maior soma de probabilidades, senão de certezas. Não pode ser abafada nem desnaturada. Nenhum homem, nenhuma nação, nenhuma igreja tem o privilégio dela. Desafia todas as inquisições e produz-se onde menos se espera encontrá-la. Têm-se visto homens que mais hostis lhe eram convertidos às novas ideias pelo poder das manifestações, comovidos até o fundo da alma pelos rogos e exortações dos seus parentes falecidos, e fazerem-se espontaneamente instrumentos de ativa propaganda.


Não faltaram no Espiritismo os que, como S. Paulo, têm sido avisados: fenômenos semelhantes ao do caminho de Damasco lhes têm operado a conversão.


Os Espíritos têm suscitado o aparecimento de numerosos médiuns em todos os meios, no seio das classes e dos partidos mais diversos e até no fundo dos santuários. Sacerdotes têm recebido as suas instruções e as têm propagado abertamente ou, então, sob o véu do anonimato. * Seus parentes, seus amigos falecidos desempenhavam junto deles as funções de mestres e reveladores, ajuntando aos seus ensinos provas formais, irrecusáveis, da sua identidade.


* - Ver Rafael, Le Doute; Padre Marchai, O Espírito Consolador; Reverendo Stainton Moses, Ensinos Espiritualistas.


Foi por tais meios que, em cinquenta anos, conseguiu o Espiritismo assenhorear-se do mundo e sobre ele derramar a sua claridade. Existe um acordo majestoso em todas essas vozes que se têm elevado simultaneamente para fazer ouvir às nossas sociedades cépticas a boa nova da sobrevivência e resolver os problemas da morte e da dor. A revelação tem penetrado por via mediúnica no coração das famílias, chegando até ao fundo dos antros e dos infernos sociais. Não dirigiram, como é sabido, os forçados da prisão de Tarragona ao Congresso Espírita Internacional de Barcelona, em 1888, uma tocante adesão em favor de uma doutrina que, diziam eles, os convertera ao bem e os reconciliara com o dever?! *


* - Ver Compte rendu du Congrès Spirite de Barcelone, 1888. Livraria das Ciências Psíquicas, Paris, 42, rua Saint-Jacques.


No Espiritismo, a multiplicidade das fontes de ensino e de difusão constitui, portanto, um contraste permanente, que frustra e torna estéreis todas as oposições, todas as intrigas. Por sua própria natureza, a revelação dos Espíritos furta-se a todas as tentativas de monopólio ou falsificação. Em relação a ela é de todo impotente o espírito de domínio ou dissidência, porque, quando conseguissem extingui-la ou desnaturá-la num ponto, imediatamente ela reviveria em cem pontos diversos, malogrando assim ambições nocivas e perfídias.


Nesse imenso movimento revelador, as almas obedecem a ordens que partem do Alto; são elas próprias que o declaram. A sua ação é regulada de acordo com um plano traçado de antemão e que se desenrola com majestosa amplitude. Um conselho invisível preside, do seio dos Espaços, à sua execução. É composto de grandes Espíritos de todas as raças, de todas as religiões, da fina flor das almas que viveram neste mundo segundo a lei do amor e do sacrifício. Essas potências benfazejas pairam entre o céu e a Terra, unindo-os num traço de luz por onde sem cessar sobem as preces, por onde descem as inspirações.


Há, contudo, no que diz respeito à concordância dos ensinamentos espirituais, um fato, uma exceção que impressionou certos observadores e do qual eles se têm servido como de um argumento capital contra o Espiritismo: por que, objetam eles, os Espíritos que, na totalidade dos países latinos, afirmam a lei das vidas sucessivas e as reencarnações da alma na Terra, negam-na ou passam-na em claro nos países anglo-saxões? Como explicar uma contradição tão flagrante? Não há aí cabedal suficiente para destruir a unidade de doutrina que caracteriza a Revelação Nova?


Notemos que não há contradição alguma, mas simplesmente uma graduação originada de preconceitos de casta, de raça e religião, inveterados em certos países. O ensino dos Espíritos, mais completo, mais extenso desde o princípio nos centros latinos, foi, em sua origem, restringido e graduado em outras regiões, por motivos de oportunidade. Pode-se verificar que todos os dias aumenta na Inglaterra e na América o número das comunicações espíritas que afirmam o princípio das reencarnações sucessivas. Muitas delas fornecem até argumentos preciosos à discussão travada entre espiritualistas de diferentes escolas.


Tem lavrado de tal modo além do Atlântico à idéia reencarnacionista, que um dos principais órgãos espiritualistas americanos lhe é inteiramente favorável. O Light, de Londres, que ainda há pouco afastava essa questão, discute-a, hoje, com imparcialidade.


Parece, pois, que, se a princípio houve sombras e contradições, eram elas apenas aparentes e quase nenhuma resistência oferecem a um exame sério. *


* - Ver mais adiante, caps. XIV, XV e XVI, os testemunhos obtidos na América e na Inglaterra, favoráveis à reencarnação.


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